quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A propósito das refeições de convívio

Nos primeiros episódios da série Dexter senti uma grande identificação com o protagonista. Não pela parte do sangue e das facas, mas por parte da incapacidade de socialização. Há certas normas sociais que não domino, nem entendo.

Admito que seja falha na minha educação, que poderia ter disfarçado, se tivesse existido essa educação, alguma falha minha de feitio. Acho que já falei aqui da minha pouca experiência em relações sociais, raramente consegui manter amizades após a separação dos nossos caminhos. Os meus pais não tinham amizades fortes e da família é melhor nem falar.

Por isso tive pouca formação em reuniões de convívio. Por isso tenho pouca vontade em participar nelas. Por isso vejo pouca razão de ser para existirem, pelo menos nos padrões civilizacionais da actualidade. Percebo que no tempo em que dependíamos muito mais da natureza, do que colhíamos e caçávamos com as nossas próprias mãos, a refeição em grupo seria importante para estabelecer relações sociais, mesmo hierárquicas. Partilhar a comida e a bebida era partilhar algo de vital e por isso muito importante. Se eu estou a partilhar algo de vital para mim, a pessoa com quem estou a fazer isso é muito importante para mim e eu para ela.

Festejar um casamento é compreensível. As famílias unem-se para abençoar a nova família. Uma nova família era importante para a sobrevivência da comunidade.

Já não consigo perceber a necessidade de colegas de trabalho, que estão juntos todos os dias, de irem almoçar ou jantar juntos. Há a desculpa do convívio, mas no trabalho não se convive? Há a desculpa de estarmos noutro ambiente, mas os assuntos da conversa acabam por serem os mesmos de sempre, do dia-a-dia. Há a desculpa de estarmos mais à vontade, mas em todas as circunstâncias devíamos ser auténticos, nós próprios, se no trabalho estamos a fingir, já não somos uma pessoa inteira.

Promover uma refeição de convívio para exorcizar frustrações, problemas, tristezas, parece-me que é embarcar numa ilusão. Os problemas, as tristezas, as frustrações estão lá quando regressarmos à rotina. Não seria melhor enfrentá-las? Procurar a origem e tratá-las?

As coisas pioram, sob o meu ponto de vista, nas reuniões com muita gente. Ainda vejo algum benefício numa refeição com no máximo seis pessoas, mais do que isso já começa a ser difícil. É mais fácil as pessoas partilharem-se num pequeno grupo do que num grande. Num grupo de seis, todos estão perto uns dos outros. Num grupo de dez, se a mesa não for redonda perde-se a intimidade e perde-se a razão de ser da refeição. Num grupo de vinte ou mais formam-se pequenos grupos ou come-se sozinho. Se um grupo grande se reúne em torno de uma pessoa, porque faz anos, porque vai embora do emprego, porque vai casar, para que serve a reunião? Essa pessoa não vai poder prestar atenção a todos da mesma forma, é impossível.

Já estive em alguns almoços de despedida. O que tem acontecido? Come-se, os mais próximos do que se despede falam com ele, talvez se fale mal da empresa e no fim cumprimenta-se deseando felicidades no novo emprego. Se me sinto mais próximo dele, volto para o escritório com o coração apertado e já com saudades. Onde há a partilha? Cada um paga a sua parte da conta, nem o grupo paga o almoço ao que se despede, nem ele nos paga a refeição. Ele segue a sua vida e no meu caso provavelmente trocaremos um mail por ano no Natal e na Páscoa, se eu tiver essa iniciativa.

O mais engraçado é que acabo por gostar de almoçar com os meus colegas de trabalho. Estou entre pessoas que gosto e com quem sinto-me à vontade, tenho o meu lugar na dinâmica do grupo. Continuo sem perceber a necessidade de nos juntarmos numa refeição, pelo menos a necessidade que alguns deles têm desses encontros. Acabo por apreciar vê-los alegres, uns copos de sangria e há risadas e boas disposição. Às vezes no trabalho há risadas sem necessidade de sangria. A nível egoísta aprecio a oportunidade de provar comidas que habitualmente não encontro. A minha dieta é bastante monótona, mais ou menos equilibrada, mas pouco condimentada.

Termino com uma referência literária. Há um escritor italiano de seu nome Giovanni Papini que é uma figura polémica. Ele nasceu filho de um ateu fanático e de uma mãe religiosa, tendo sido baptizado em segredo. Cresceu sob a influência do pai. Interessou-se pela literatura. Andou pelo fascismo italiano e a uma dada altura converteu-se ao catolicismo. Foi um católico algo singular. Teve livros no Index. Enfim foi um anarquista. O que ele tem a ver com esta reflexão sobre as refeições de convívio? Num dos mais famosos livros dele “Gog” há um capítulo que me marcou muito. O livro é uma colectânea de textos supostamente escritos por Gog, um homem rico e insatisfeito com a vida. Num desse escritos ele conta a sua estranheza sobre a importância que a raça humana dá às refeições. Ele pergunta, se nas nossas casas temos um lugar próprio para evacuar o que comemos com privacidade, porquê que não temos um lugar com igual privacidade para iniciarmos o processo? Assim sendo ele mandou construir uma casa de comer confortável e discreta.

(Na antiguidade era comum as latrinas comunitárias e havia lugar de encontro nesses lugares, mas se não se manteve por alguma razão foi, não é?)

Sem comentários: