segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Glossolália

A minha relação com a poesia é estranha. Gosto de escrever versos (raramente atrevo-me a chamar poesia ao que escrevo em verso), mas ler é já outra história. Desde os tempos de escola que sempre tive muita dificuldade com a poesia.

É estranho para quem gosta de escrever e ler, não gostar de ler poesia. Não gosto particularmente porque tenho dificuldade em entender o que leio. Na leitura sou muito pragmático, tenho que perceber o que estou a ler. Talvez tenha sido formatado pela corrente realista.

O meu poeta preferido é o Cesário Verde. A sua poesia é realista, fala dos locais onde andou, faz descrições dos cenários e a poesia entra nas entrelinhas, na mistura de temas. Está tudo claro e límpido.

O Fernando Pessoa e companheiros de corpo deprimem-me, embora o único poema que sei de cor seja “Natal na província neva”. Há demasiado absurdo, vazio nos poemas deles.

Camões é um clássico, trágico e por isso deprimente também. Está longe de mim no tempo e na vivência.

Agora no Verão li a poesia do José Tolentino Mendonça como já escrevi há tempos. Finalmente encontrei poesia que não me deprime. Isso é excelente. Mas as dificuldades continuaram. Muitas vezes não faço ideia do que ele está a escrever. Usa imagens e combinações de palavras que pouco sentido me fazem, apesar de ficarem bem juntas. Na primeira metade do livro a palavra fogo aparece muitas vezes, algumas delas a despropósito.

Este livro “A noite noite abre meus olhos” é uma recolha dos primeiros livros num só volume. Devo confessar que só gostei mais do livro “Estrada Branca”. Nele os poemas falam mais claramente de Deus e por isso gostei mais, até porque eu queria ler poesia de cariz espiritual.

Posso dizer que gostei do livro, mesmo não gostando por aí além de ler poesia. Gostei apesar de não haver uma rima sequer em todo o livro. E eu gosto de rima, apesar de isso ser coisa ultrapassada. Em alguns poemas cheguei a ver versos a terminar com o pronome “e”, algo impensável até ao início do século XX. Não entendo o tamanho dos versos, a configuração das estrofes.

Eu sou muito rígido no que diz respeito à estrutura dos poemas. Já escrevi versos livres, mas sinto-me mais à vontade com versos com métrica fixa e estrofes claras.

Em resumo a palavra glossolália aplica-se metaforicamente a mim. Tenho a capacidade de escrever versos, que talvez ninguém entenda, mas não tenho a capacidade entender línguas estranhas. Glossolália era um carisma que São Paulo fala nas suas cartas. Havia outro carisma que consistia em entender diversas línguas. Eu estou, no que diz respeito à poesia, na glossolália.

3 comentários:

Cristina Torrão disse...

Bem, eu também tenho muita dificuldade em entender a maior parte da poesia. Mas pensei que era por ser "pouco dotada" nesse aspecto. Saber que alguém que escreve poesia "padece do mesmo mal" foi, de certa maneira, gratificante ;)

fec disse...

Tu podes

Acontece que há histórias, velhas como o mundo, que continuam iluminantes. E em horas de encruzilhada como são as que vivemos, reposicionam-nos perante a tarefa essencial, que não é apenas a da reconstrução dos mercados, mas a do Ser Humano, a de nós próprios.
Penso na história dramática de Caim e Abel. Ali é-nos dito que o projecto ético (no caso, o da fraternidade) não se matura como mero dado natural, nem é uma imposição do sangue, pois este inclusive se pode voltar contra o seu igual. Os irmãos podem matar-se. A fraternidade continua ao alcance do homem, no entanto, mas como uma decisão.
É curioso o diálogo que Deus tem com Caim no capítulo 4 do Livro do Génesis: “Porque estás zangado e de rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto, se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas tu deves/podes (timshel) dominá-lo”.




O belíssimo romance de John Steinbeck, “A Leste do Paraíso”, pega nesta palavra que Deus dirige a Caim e desenvolve uma pesquisa talmúdica sobre o seu sentido. O verbo hebraico timshel é traduzido nas Bíblias mais correntes por “Tu deves”, mas Steinbeck, partindo de algumas versões rabínicas, propõe que se leia “Tu podes”. E expõe esta ideia em algumas páginas intensíssimas. Ao homem em confronto com o Mal, transtornado a ponto de eliminar o seu próprio irmão, Deus não diz: “vou retirar-te a liberdade, vou condicionar-te para que isso não mais aconteça”. Antes afirma “Tu podes vencer o Mal”.


O Mal aparece como um desafio a vencer, e não como uma inexorável fatalidade. Não somos colocados perante uma moral automática e peremptória, mas no interior dinâmico de uma moral narrativa. O Bem e o Mal constituem decisões éticas. Perguntamo-nos: ‘como pode o desgostado Caim não matar Abel, se despeitado lhe dedica uma inveja mortífera, se todos os seus direitos de filho mais velho acabam por ser relativizados por uma preferência aparentemente caprichosa de Deus?’ Tudo lhe dá razão, é verdade, mas a razão de Caim não constitui um direito de eliminar o irmão, porque Deus lhe diz uma palavra inesperada: «Tu podes (timshel) dominar o mal».

José Tolentino Mendonça

In Página 1, 07.05.2009

jota disse...

Obrigado à Kássia e ao Sofrologista pelos vossos comentários.